sábado, 26 de abril de 2014

[Opinião +D] E o estudante, pá!

Não, não vou a reboque dos “Homens da Luta”, mas que eles têm uma certa razão de que o ensino vai mal, lá isso têm razão!
Falo, neste caso, das lutas estudantis para um ensino superior universal e gratuito. Esta luta hereditária da geração de 60 é constante e desconcertante para alunos e sucessivos governos.
Mas primeiro um pouco de história.

Primeiras menções a manifestações
As primeiras manifestações de estudantes de que se tem notícia, num contexto social são, confinadas à cidade de Coimbra, em 1861, não só pelo facto que durante séculos Portugal só tinha uma Universidade, mas também devido à taxa de analfabetismo e pouca frequência escolar nos quatro anos existentes. Esta cidade era o local, por excelência, onde se formavam futuras personalidades do poder político português. A Sociedade o Raio (1861-1864), mais tarde chamada Rolinada(1864), é uma referência no meio estudantil de Coimbra de então para um associativismo estudantil e contestatário, onde se destaca a luta contra o  Reitor Basílio Alberto com a sua reforma de ciência e costumes estudantis. Esta Sociedade lança um manifesto-proclamação redigido por Antero de Quental que é assinado por metade dos estudantes.
Voltamos a ouvir falar de manifestações dos estudantes em 1907, com a greve geral académica que se vê incapaz de contestar as estratégias mais conservadoras, mas que lhe confere uma dimensão nacional tendo alcançado ligação a Liceus e escolas superiores então formadas. Também ganharam uma tendência para suscitar a alteração das políticas governamentais para a educação pública, pela primeira vez, em particular para a universitária.
Mais tarde em 1910, Coimbra assiste a várias escaramuças devido à Revolução Republicana, mas que traz alguma igualdade entre professores e alunos, pois Manuel Arriaga, recém-empossado reitor, sem qualquer insígnia universitária, anuncia a facultatividade da capa e batina em cerimónias universitárias. Para além de uma contestação em prol de uma igualdade e representação, que veio a falhar, dentro dos órgãos da universidade, as movimentações estudantis também tinham uma segunda tendência que era suscitar nas políticas governamentais um ensino público, em especial o ensino superior.  Claro está para todos que, esta cidade tinha, e ainda hoje tem, uma terceira tendência que é puramente politica.


“Sua Ex.ª, Senhor Presidente da República, dá-me licença que use da palavra”  
Passaram-se cerca de cinquenta anos e alguma instabilidade político-económica no país, duas guerras mundiais  e a visão que tenho é que há um retrocesso no que diz respeito à então chamada “Democratização do Ensino Superior”, pois Salazar ficou quarenta anos no poder e proibiu o direito à reunião e à liberdade de imprensa, embora as Associações de Estudantes passassem um pouco à margem dessas leis. Em 1944, a eleição de Salgado Zenha, que foi eleito em assembleia geral de alunos, deu alguma esperança ao espírito estudantil e durou dez anos. Mas, como era de se esperar, nos anos seguintes círculos mais conservadores se seguiram e recuaram nestas regalias. Em 1956 o Governo elabora o decreto-lei 40 900, que instituía uma normativa semelhante à que vigora no mundo sindical para regulamentar o meio das Associações de Estudantes e, assim, pôr a eleição das mesmas sob o controlo do Estado. Embora a normativa não tenha sido aprovada, graças ao bloqueio estudantil, o Governo consegue a sua afirmação com o decreto 44 632 adotado depois da crise académica de 1962. Porém, a sua aplicação prática era motivo de polémica entre as autoridades e estudantes, pairando sempre como uma ameaça. É nesse mesmo ano que as comemorações do Encontro Nacional do Estudante (na época celebradas a 9 de março), são proibidas por se pensar na época, que do corporativismo estudantil, que defende um lugar próprio para as associações de estudantes, a um sindicalismo estudantil, ser um pequeno passo. O Governo ordena à reitoria de então que seja feito um processo disciplinar contra os dirigentes da AAC e manda encerrar as suas instalações. Devido a este ato é decretado o «luto académico» e a AAC cessa a sua atividade. Com estas atitudes por parte do Governo os estudantes de Lisboa, indignados, não ficam parados. Como represália as autoridades proíbem as comemorações do dia do estudante que teria lugar de 24 a 26 de março do mesmo ano. Na manhã de 24, estudantes foram espancados e presos, instalações universitárias sitiadas e cantinas ocupadas. Muitos professores e parte das autoridades universitárias reagem, como o próprio diretor da Faculdade de Direito que impede a detenção de estudantes nas suas instalações. O Reitor da recém inaugurada Universidade de Lisboa chega mesmo a negociar com o ministro do interior a retirada das forças policiais.  É por esta perseguição do Estado Novo que ainda hoje se celebra o dia nacional do estudante a 24 de março.

António Salazar é substituído por Marcelo Caetano em 68, e, apesar das camadas sociais menos favorecidas pensarem que daí advinha uma “primavera” de abertura política (a “primavera marcelista”), Marcelo continua as políticas repressivas do seu antecessor o que poderá ter dificultado a marcha do plano universitário. É no ano letivo de 1968-69 que se afirmam as divergências políticas com o regime autoritário marcelista de uma forma mais aberta, mais concretamente na inauguração do edifício das Matemáticas, a 17 de Abril de 1969, na presença do Chefe de Estado Américo Tomás e do seu ministro da educação José Hermano Saraiva, com Alberto Martins, presidente da AAC,  a pedir a palavra quando isso não estava programado. Esta atitude é tomada, pelo regime, como algo irreverente e inadmissível quando apenas deveria ter sido concedido, pois era um direito que lhe assistia, como representante dos estudantes. A surdez do Estado Novo a pedidos de mudanças de políticas educativas e uma renovação do sistema universitário  passaram pela expulsão de professores e alunos chegando mesmo a perseguição pela PIDE a Alberto Martins e prisões com direito a tortura a alguns dos seus pares. No fundo, Coimbra torna-se um campo de batalha e de politização onde perde a conotação elitista, que tinha até então, alargando-se a classes mais desfavorecidas e também começa a abrir mais ainda as suas portas a núcleos femininos. É de notar o dinamismo, a participação, a resistência aos modelos autoritários contestados pelos estudantes que nos dias de hoje não se nota. Tudo isto teve o seu auge em 1971 sobe a grande influência dos ecos do chamado “Maio de 68“, em Paris, o qual faz tender para um tipo de ativismo político que quer o fim da guerra colonial, o aniquilamento do regime e da sua forma de economia.

Uma primavera de cravos com esperanças               


A revolução dos cravos vem efetivar todas estas lutas estudantis de uma forma rápida e profunda, com a exceção do ensino superior público devido à falta de consenso inter-universitário, e onde os movimentos estudantis ganham grandes capacidades emulativas e emancipatórias. Os direitos de reunião, informação e liberdade de imprensa são repostos nesta jovem democracia. As próprias universidades ou escolas são democratizadas uma vez que a sua representação passa a existir não só nas Associações de Estudantes, mas também em órgãos como os conselhos científicos, pedagógicos e diretivos.
As lutas anti-propinas destacam-se no pós “25 de abril” com três períodos distintos: um decorrente do “biénio revolucionário” (1974-75, que pouca matéria se tem para explanar devido a pouca investigação), o segundo foi o da institucionalização da chamada “Lei Cardia” até à Lei de Bases do Sistema Educativo (1976-1986) e por último um terceiro com as lutas anti-propinas (1986-1992).
Graças a conhecer pessoas que passaram diretamente pelo primeiro período aqui mencionado, pude constatar que a ingovernabilidade imperava nas universidades com as greves, as R.G.A.’s (reuniões gerais de Alunos) e todos os tipos de protestos. Era necessário também uma restruturação do sistema universitário, que foi feito em constantes R.G.A.’s, a nível de conteúdos. Num caso muito concreto os alunos de arquitetura da antiga ESBAL quiseram que o seu curso tivesse mais conteúdos técnicos o que levou, mais tarde, à saída deste curso da própria ESBAL de Universidade Clássica e a passar para o IST (Instituto Superior Técnico) e assim se manteve até há uma ano atrás, o que prova que o enquadramento das universidades era para os alunos de então um fator importante. Nesta altura pagava-se 70$00 de propinas (em relação ao curso de arquitetura), para um ordenado médio de 1 800$00 o que representava cerca de 4 % de um ordenado médio português o que era quase “residual”. Hoje um ordenado médio ronda os 700€ / 800€ e as propinas rondam os 300 a 400€.
Este “biénio revolucionário” também conduziu a saneamento de professores em R.G.A.’s com a “legitimidade revolucionária” que, na época, pautava as dinâmicas do pós-revolução.
O segundo período, iniciado a 25 de novembro de 1975, é o período do “Decreto de Gestão” de Sottomayor Cardia, em que eram substituídos os órgãos de “gestão democrática” por organismos de carácter associativo, com forças partidárias na retaguarda, a comandá-las.
Em 1977, apesar da contestação, são readmitidos professores que tinham sido saneados dos seus postos de trabalho na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, chegando mesmo a encerrar a Universidade. Ao que pude apurar, esta contenda só teve resolução depois de um referendo domiciliário sobre a reabertura da Universidade de Coimbra promovido pelo Ministério da Educação e que para uma ala mais esquerdista foi o estilhaçar do movimento estudantil.
Paralelamente, como já referi, houve mudanças profundas nos currículos que por sua vez geraram um aumento de matrículas nas universidades, mais do dobro, o que provocou um estrangulamento do ensino superior e por consequência nas saídas profissionais o que resultou num aumento da insatisfação estudantil. A Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), em 1986, veio agudizar ainda mais a insatisfação dos universitários devido à implantação de medidas que barravam e ainda barram a entrada nas universidades públicas de alunos que são desfavorecidos, só podendo recorrer às universidades privadas. Com todos estes reboliços e uma profunda crise financeira na década de 1980 acabaria por se reequacionar a questão das propinas, que na década seguinte veio a ser uma realidade dura. Mas sobre isso escreverei mais tarde, pois o texto já vai longo.

Agradecimentos: Arq. Mestre Carlos Perry, ex-Sócio Fundador da Associação Académica da E.S.B.A.L. (pela entrevista telefónica que me ajudou muito na elaboração do texto)


Ricardo Trindade Carvalhosa  (membro da Coordenação Nacional do +D)

Os textos de opinião aqui publicados, se bem que da autoria de membros dos órgãos do +D, traduzem somente as posições pessoais de quem os assina.

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