quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

[Opinião +D] "Três formas de morte da democracia interna dos partidos: Sindicatos, Jotas e Seguidismo"

Vários estudos recentes reforçam a convicção generalizada de que os partidos políticos portugueses estão em estado comatoso. Os cidadãos sabem-no, deixaram de acreditar na sua capacidade para melhorarem as suas vidas e, até, da sua capacidade para uma participação politico-partidária activa no interior dos partidos. Esta descrença leva os cidadãos a virarem-lhes as costas. O fenómeno não é exclusivo de um ou de outro partido, mas contamina - numa "doença participativa" - todos os partidos do espectro politico português, sendo especialmente intenso entre os partidos com vocação de poder numa escala nacional (PSD, PS e PP) ou a um nível mais local (PCP). Mas os partidos políticos continuam a ser a principal ferramenta da democracia tal como hoje a conhecemos. Na forma (representativa) que este regime hoje assume os partidos são essenciais. O estado vegetativo dos partidos leva assim a um estado vegetativo da própria democracia e, a prazo, ao seu sequestro pelos Interesses (estrangeiros e financeiros) que dela tomarão posse mantendo apenas a aparência de democracia enquanto governam, na sombra, por telecomando dos aparelhos partidários e pelo controlo dos Media. Por fora, Democracia, por dentro, Plutocracia. É para aqui que caminhamos, a passo acelerado e silencioso. A menos que tomemos consciência desta situação, nos mobilizemos e participemos no diagnóstico, tratamento e cura desta "doença participativa" nos partidos políticos portugueses.

Esta doença dos partidos tem vários sintomas. Um dos mais evidentes é aquele desvio anti-democrático conhecido como "o culto do líder". Através deste culto do líder, os lideres (locais e nacionais) agregam hostes de seguidores que competem junto ao seu líder por fragmentos de atenção e anseiam por vagos e raros momentos de recompensa. O fenómeno ocorre a vários níveis, dentro da - demasiado densa - pirâmide organizacional dos partidos, mas propaga-se sempre da mesma forma, no sentido ascendente, replicando este culto de seguidismo acrítico nas camadas de liderança intermédia, até alcançarem os órgãos mais elevados de coordenação e o líder máximo do colectivo. Este fenómeno de eco panegírico estende-se assim até todos os níveis dos partidos e condiciona severamente a criação de pensamento autónomo ou critico para com as liderança, nas suas várias camadas hierárquicas. O seguidismo leva à cristalização e à perda de reactividade, de correcção e detecção dos erros no interior dos partidos, e dá assim um grande contributo para o imobilismo que hoje os caracteriza.

Outro nexo de causalidade para a actual decrepitude e imobilismo dos partidos políticos pode ser encontrado na estranha preponderância das juventudes partidárias ("jotas") nos aparelhos dos partidos. Estas estruturas partidárias foram originalmente concebidas, tal como as quotas das mulheres com objectivos virtuosos (chamar mais cidadãos para a politica activa e de treinar quadros para, mais tarde, assumirem funções de responsabilidade pública). Mas com o passar do tempo, as "jotas" tornaram-se em formas distorcidas de enviesamento da forma correta de fazer politica. Profundos conhecedores dos meandros dos processos de ascensão dentro dos aparelhos, os "jotas" foram-se instalando, ao longo de décadas, em todos os níveis dos partidos, assumindo completamente o poder e por um misto de "crowding out" e de exclusão consciente repeliram todas as tentativas de renovação dos quadros partidários a partir de independentes ou da sociedade civil não-partidarizada. Vivendo exclusivamente, ou em parte, como avençados autárquicos ou em lugares no aparelho de Estado, estes "jotas" singraram na vida, reforçando a sua ligação ao Partido e intensificaram os seus traços de personalidade que o aparelho e os seus "lideres" mais apreciam: a fidelidade (não confundir com lealdade), o seguidismo, a falta de pensamento critico e, sobretudo, a rainha das qualidades para qualquer aparelho de qualquer partido politico: a previsibilidade. À medida que os partidos se deixavam tomar pelas "jotas" crescia o seu afastamento da sociedade civil organizada, dos movimentos sociais inorgânicos e da cidadania activa. Por isso, o fenómeno da "jotificação" dos partidos está directamente ligado e proporcionalmente relacionado com o fechamento dos partidos aos cidadãos e aos galopantes números da abstenção e de perda de uma militantes activa que hoje afectam todos os partidos do sistema politico português. Obviamente, importa não confundir estes "jotas" com "juventudes partidárias" nem confundir a parte com o todo... mas reconhecer o problema e enfrentá-lo com coragem e decisão.

A doença de que padecem os partidos políticos não tem que ser terminal. Não tem que ser se essa for a vontade dos seus lideres e militantes, mas assim será se os dirigentes se deixarem enredar nas redes clientelares que vivem de e para os Partidos (o "aparelho") e será terminal se os seus militantes não se revoltarem contra este estado de coisas e tomarem os destinos dos seus próprios partidos nas suas mãos, tornando-se de "partidos de aparelho" em "partidos de militantes". O processo de decomposição interna a que mais acima nomeámos como "jotificação" pode ser combatido. Assim exista vontade para tal por parte da maioria dos militantes e de alguns dirigentes influentes. Todas as estruturas especiais, criadas nas primeiras décadas da democracia para captarem estratos de idade específicos devem ser extintos. Por forma a assegurar uma representatividade especial nos órgãos, quotas por idade (não somente para jovens, mas também para seniores) podem ser avaliadas. Mas estas quotas não devem ter uma leitura absoluta. Devem existir mecanismos flexíveis de compensação, que não bloqueiem a democracia interna quando não for possível completar algumas destas quotas, sem dogmas nem interpretações cegas, usando, por exemplo, a rotação de funções entre membros efectivos e suplentes dos órgãos nacionais.

Esta doença participativa tem cura. E uma cura eficaz se for atacada a partir do seu maior foco (o local e autárquico) e das bases de militantes, por forma a que o esforço seja consistente, amplamente participado e eficaz. O processo de cura terá assim que assentar nas divisões locais dos partidos (secções ou núcleos locais) e no seu grande bloqueio democrático, transversal a todos os partidos, que são os sindicatos de voto. Através do escambo de influências e favores, do simples pagamento de quotas ou da oferta de emprego ou de contratos comerciais ou de prestação de serviços (avençados), muitos núcleos, secções, concelhias ou federações dos partidos políticos escolhem as suas lideranças não em função do programa das coordenações ou presidenciais locais, nem da sua capacidade para cumprirem o mesmo, mas em função da troca de bens ou serviços que têm muito pouco de politico e que são muito próximas da fraude eleitoral. Sejamos mais claros: o escambo de favores ou pagamento de quotas a militantes reais ou a militantes-zombie é uma forma de corrupção, não enquadrada juridicamente, mas ainda asssim uma forma de corromper a democracia interna dos partidos e, logo, a democracia. Extensivamente aplicada em todos os grandes partidos, a sindicância de votos é um fenómeno de grande gravidade, que mina a qualidade das lideranças locais, que assim alcançam e preservam posições não é função dos seus méritos, mas em função dos recursos que conseguem mobilizar para os seus sindicatos de voto. O fenómeno é, contudo, grave também a outros níveis: tornado incontornável devido à sua disseminação, torna-se um bloqueio impossível de vencer a quem quer que queira ascender nos órgãos de base. A sua disseminação e eficácia intensifica a utilização deste método fazendo com que, num fenómeno de imitação do (mau) exemplo, ele se propague aos seus seguidores e futuros competidores que assim, num fenómeno de duplo feedback, farão o mesmo quando chegar a sua vez de disputarem cargos locais ou nacionais, abrindo também eles, e por esta forma, a porta da sua ética pessoal a manifestações mais graves do fenómeno da corrupção. A propagação e continuidade dos sindicatos de voto é muitas vezes assegurada porque os lideres locais ou nacionais que deles beneficiam fazem-no através de "jagunços", de "homens de mao" sem ética, nem princípios morais, que dão a cara pelo "líder" e que realizam e sem nome os pagamentos e cobranças de sindicatos. Obviamente, numa fase posterior, o "jagunço" exige por sua vez a cobrança do favor, quer reclamando ele próprio uma posição de liderança, quer um qualquer rendimento no Estado ou numa autarquia local. Sejamos claros: aquele que é hoje corrupto sindicando votos, será corrupto quando alcançar as funções que visa conquistar, sejam elas internas ao partido em que milita, sejam elas autárquicas ou de âmbito nacional. Uma forma eficaz, amplamente ensaiada e testada noutros países, de quebrar os "sindicatos de voto" são as eleições primárias para órgãos internos dos partidos e, sobretudo, o fim do pagamento de quotas para que os militantes possam votar. As Primárias (abertas a simpatizantes) poderiam também abrir os partidos, ao nível local e nacional, à cidadania e aos simpatizantes, anulando assim a eficácia dos sindicatos. Paralelamente, e para anular a eficácia desses sindicatos, a transformação da quota em donativo que não tem que ser prestado para que o militante possa votar, permitiria que aqueles candidatos com melhores propostas, programas mais credível ou provas dadas fossem eleitos, não apenas aqueles que maiores recursos financeiros e redes clientelares e de favores conseguissem reunir. Os financiamentos assim perdidos seriam compensados no acto do voto, requerendo aos votantes o pagamento de uma pequena quantia. Simultaneamente, a seriedade, a rectidão, transparência de conduta seriam asseguradas pelo estabelecimento de mecanismos de revogação de mandados, activáveis por petição de uma certa percentagem mínima de militantes. Por fim, os lideres locais e nacionais têm que sacudir de uma forma definitiva e permanente, as hostes de seguidores que os rodeiam, ansiando sempre por benesses e favores. Formas de estímulo à critica, sã, regrada e construtiva devem ser estabelecidas, assim como de prémio e reconhecimento aos melhores.

É possível mudar os partidos políticos e, consequentemente, salvar a democracia, tornando-a, gradualmente, um pouco menos representativa e um pouco mais participativa e participada. Assim queiramos. Mas quereremos?...


Rui Martins (membro da Coordenação Nacional do +D)

Os textos de opinião aqui publicados, se bem que da autoria de membros dos órgãos do +D, traduzem somente as posições pessoais de quem os assina.

Sem comentários:

Enviar um comentário