segunda-feira, 22 de setembro de 2014

[Opinião +D] Ainda sobre Vasco Graça Moura

Ainda sobre Vasco Graça Moura, salientemos aqui a sua obra A Identidade Cultural Europeia, publicada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, no final de 2013. Não tanto pela sua extensão, mas, sobretudo, pela sua densidade, lemos esta obra como uma espécie de “testamento espiritual”, na sua apologia desassombrada da Europa enquanto “identidade cultural”. 
Decerto, a proximidade da morte acentuou ainda mais esse seu característico desassombro, bem evidente em várias passagens da obra – a título de exemplo, atentemos nesta: “Não pode tolerar se que o politicamente correcto ou um mal disfarçado propósito de, em nome de outras orientações pretensamente racionalizadas, equipare um totem da Papuásia e um quarteto de Beethoven ou a uma obra de Piero della Francesca” (p. 33). 

Fazendo a crítica feroz do relativismo cultural, trave-mestra de todo o pensamento pós-moderno, Vasco Graça Moura desenvolve depois, de forma corajosa, ainda que nalguns pontos decerto questionável, a sua apologia da Europa, dizendo-nos: “O espaço europeu criou condições para uma profunda reflexão do homem sobre si mesmo e sobre o mundo. Arte e filosofia, nesse aspecto, partilham o terreno, muito embora com processos, métodos e objectivos diferentes (…). Já vimos que a Europa, diferentemente dos outros continentes, começa por se pôr em questão. É a Europa e são, hoje, as Américas, suas extensões civilizacionais, num todo que pode genericamente ser englobado sob a designação de Ocidente.” (pp. 62-63). 

E acrescenta, logo de seguida – ainda com maior desassombro: “Enquanto um imobilismo ancestral caracterizou as outras áreas do planeta, a essa propensão para a auto-reflexão conexa com a elaboração de uma visão do mundo podemos atribuir a vontade de teorização estética, sobre o Belo, as suas condições e as suas regras, bem como sobre a sua capacidade de representar a realidade com um coeficiente de ‘fidelidade’ e de verosimilhança diferente das maneiras de ver de outras partes do nosso planeta. Essa representação esteve constantemente presente ao longo dos séculos, tendo, com a invenção da perspectiva (Lucca Pacciolli, Piero della Francesca), que é uma descoberta europeia, permitindo a simulação da tridimensionalidade e portanto uma abordagem, uma representação e um conhecimento do real muito mais completos.” (p. 63). 

Ao contrário, porém, de todos aqueles que – a nosso ver ingenuamente – partem da afirmação de uma identidade cultural europeia para a defesa da sua união política, Vasco Graça Moura dá mostras de um sábio cepticismo, bem expresso, por exemplo, nesta passagem: “deve notar-se que cada americano é capaz de bater no peito e de se declarar pronto a morrer por ‘the Nation’, seria bizarro esperar-se a mesma atitude da parte de um europeu. Ninguém se mostra disposto a dar a vida pela Europa…” (p. 81).  

Ou seja, para concluir: há, na sua irredutível multiplicidade, uma identidade cultural europeia; simplesmente, essa identidade cultural não é de todo suficiente para sustentar uma real união política, como pretendem alguns, que insistem em estabelecer um paralelo com o federalismo norte-americano.



Renato Epifânio (membro da Coordenação Nacional do +D)
Os textos de opinião aqui publicados, se bem que da autoria de membros dos órgãos do +D, traduzem somente as posições pessoais de quem os assina.

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