O SONHO
Somos do tamanho dos nossos sonhos; não da nossa bolsa.
Enquanto portugueses, enquanto sociedade, somos aquilo que em coletivo
conseguirmos desejar; não somos o resultado dos nossos contributos financeiros.
É verdade que esta participação europeia tem reduzido o nosso coletivo aos
nossos magros recursos. Também é verdade que a União Europeia é apenas uma
união económica. Quem procure mais que essa realização naquele contrato,
frustra-se. Os contratos nem sempre correm bem. Por isso, quem se mede pelo
alcance da bolsa vive agora tempos magros. O azimute do sonho coletivo sustenta-se
com o que o caminho lhes dá. O sonhador vive num corpo pouco exigente. Para
ele, economia rima com poesia apenas na publicidade que circunstancialmente
troca por alguma satisfação.
CONSTITUIÇÃO
Para que o coletivo se torne viável, há a norma
transformada em lei comumente aceite e respeitável. A raiz, a mãe, a primeira
das normas que em comum aceitámos, foi a Constituição. Nela encontramos raiz
para todo o coletivo. Nela, na Constituição da República Portuguesa, temos as
regras de participação nas decisões coletivas. Da prática dessas regras,
podemos encontrar resultados que podem ou não, corresponder às expetativas que
criaram os “pais” da constituição. Pais sim, que foi feita no tempo do poder
paternal e nem sonhavam eles que havia de durar até agora, época em que a
responsabilidade parental cabe também e em igualdade de circunstâncias… às
mães! Mas se a constituição tivesse tido mães, se fosse uma genuína filha
delas, não seria como é: fechada, triangular, hierárquica, limitadora dos
exercícios de poder que reparte porque não tem coragem para responsabilizar os
seus executores! Imagino que as mães da constituição a deixariam mais solta,
mais aberta à criação e também mais responsabilizadora dos seus atos, todos
os que a praticam! Essa seria a grande diferença!
A CRIAÇÂO
A vontade paternalista que presidiu e enformou a nossa
constituição foi idêntica à que criou outras, mas como em todas as receitas, os
ingredientes e a cozinha são mais importante que a receita em si, por melhor
que esta seja! Por idêntica razão à que faz o cozido, o torriscado, a boleima e
os ovos-moles serem aquelas maravilhas que não imaginamos trocar de locais e
gentes, também cada povo deveria ter a sua constituição e não a universal stone-soup que nos dão invariavelmente!
Sim, pode-se concluir que o regionalismo já devia de ser uma realidade! Mas
dessa receita minutada que nos deram há 37 anos e das emendas que lhe fizeram, talvez
uma apenas tenha servido para adaptar a receita aos ingredientes e à cozinha!
As outras mexidas, foram para a tornar ainda mais igual ao que não é: europeia.
Nem será, que a Europa não tem a variedade e riqueza que esta terra tem! Mas
como ainda está o pai na cozinha, temos de comer da sopa de pedra!
A METÁFORA
Agora imagine-se, com esforço mas imagine-se que a mãe
resolve tomar conta da cozinha e usar os ingredientes que conhece. Imagine-se o
banquete feito daquilo que ao pai sobraria porque não lhe sabia o que fazer! E
ao gosto de cada familiar, sem obrigar os putos a comer favas nem os homens a
comer couves! Mas cada um teria a sua função na tarefa da preparação do
banquete, com responsabilidade que se apuraria na hora de distribuir o próximo
banquete. (Nada de acreditar que a mãe e o pai são as mulheres e os homens, que
isso é reduzir a humanidade ao que ela não é!) Vamos a ver o que se aproveita
da constituição: começando por algum lado que não é importante onde se mexa
primeiro mas é urgente mexer no essencial que são as responsabilidades. Os
constituintes deixaram as responsabilidades para o povo. De vez em quando, este
tem a responsabilidade de despedir os cozinheiros e contratar os que melhor se
fizeram parecer. Também tem a responsabilidade de sustentar a dispensa através dos
impostos. E os cozinheiros? Têm como responsabilidade
encherem-se enquanto dura o contrato pois sabem que acabado este, tudo pode
acontecer! Do mais, se fazem bispo ou deixam estragar a farinha, nada lhes é
imputável! De modo que podem esbanjar, rebolar na nata e trocar os ingredientes
à vontade do momento, pois daqui a outro contrato já ninguém se lembra!
RESPONSABILIDADE
Como é que podemos fazer de maneira diferente? Responsabilizando
os cozinheiros, claro! Todos os que tocam na receita e tenham como missão
usá-la, devem ser responsabilizáveis. Do parlamentar ao juiz, do diretor-geral
ao médico, todos devem ser responsabilizáveis. Esse é o grande déficit da nossa
democracia tentada: de responsabilização. Porque não respondem os deputados perante quem
os elege? Porque quem os elege é o povo português e esse é que tem a
responsabilidade na escolha! Se os deputados fossem eleitos por certo círculo
de cidadãos a quem tivessem de prestar contas a miúde, diretamente, a qualidade
do parlamento seria outra! E o juiz, quando larga a sentença na vida das
pessoas agravando-lhe o inferno do recurso à justiça, sempre com a desculpa de
que o cidadão pode recorrer para tribunal superior se não lhe servir aquela
sentença, se fosse responsabilizável pela lei que não usou ou o princípio que
preteriu, a qualidade da justiça seria outra! Quando do diretor-geral resolve
remodelar a decoração e o staf deitando fora tudo o que podia continuar a
servir bem, se lhe saísse do bolso e do seu crédito social, pensaria duas
vezes!
O POVO
Mas afinal, como é que o povo, esse eterno responsável pelas
más escolhas das nossas democracias tentadas se tem enganado tanto? Como é que
a sabedoria do povo que tão brilhantemente o tem norteado estes quase 19
séculos, de repente num espaço de menos de 40 anos consegue dar tanto tiro nos
pés? Tudo começa na receita com as suas condicionantes de por um lado, querer
fazer omeletes sem partir os ovos como é o caso da responsabilização e da mais
grave condicionante que é obrigar o povo a fazer os bolos sem poder abrir os
pacotes da farinha! Acontece que quem tem a farinha tira disso bom partido e
blindou mesmo os pacotes, de tal forma que eles não se abrem nem durante as
misturas nem durante a cozedura! Vai daí que quem quer passar incólume por todo
o processo democrático, basta entrar num dos pacotes da farinha, de preferência
dos grandes que têm mais resistência! Algum povo esperto, foi logo o que fez e
se as coisas no seu pacote começam a ficar apertadas, é só mudar de pacote! Mas
a maioria do povo não é de natureza empacotável. É povo mas andar avulso não
lhe causa ansiedade!
OS PACOTES DIFERENTES
O povo acarreta a responsabilidade de escolher o que não
quer, pois de entre farinha do ano ou farinha de mistura, desde que vá
conseguindo viver, pouco lhe importa! Se a fábrica tivesse intenção de
partilhar, abriria as embalagens de farinha. Parece que a constituição - a
receita - até prevê algo quando diz que os pacotes devem integrar os independentes.
Mas não diz que tipo de integração e responsabilidade deve ter a embalagem. Por
isso, ignore-se essa parte que não dá para aplicar. Assim os partidos vão
continuar blindados e incólumes ao povo e à democracia também. E o parlamento
reflete bem isso. A miúde, vão nascendo outros pacotes mas são pequenos e por
isso, dão imenso jeito aos grandes que vêm mais algum povo embrulhado em
pacotinhos que não conseguem chegar à cozinha mas enquanto se vão embrulhando,
não ameaçam estragar os pacotes maiores. A receita deveria obrigar a cozinha a
usar, também dos pacotes pequenos, assim numa proporção razoável para eles se
sentirem parte da receita.
ALGUMA REALIDADE
De nada vale à democracia fazer pacotes ou partidos que
serão sempre mais pequenos e servem aos grandes para neles quebrar parte da
força que teria de enfrentar se a sociedade já não se prestasse a esse favor.
Por isso, seja o que se faça para mudar se não tiver como primordial propósito
mudar a receita ou a constituição de modo a que os pequenos partidos também
possam cozinhar ou ter assento parlamentar, de nada servem as boas intenções de
mudança. Se não querem entrar na cozinha, para que é que usam a farinha? Por
rateio ou por imposição de quota parlamentar, pouco importa agora. Nesta
segunda década do século 21, importante é que a receita permita que todos nela
entrem. Sem esta emenda, nada realmente mudará. Da mesma forma que de nada
serve a cozinha ou o parlamento se aos ovos e aos pacotes de farinha que
alberga não for suscetível que se possam abrir. Abrir ao povo sempre que este
precisa de formação cívica atual e atuante. Sempre que este precisar de
conhecer a natureza dos ingredientes que tem de usar.
BASTA DE SERMÃO!
Não sei indicar receitas que me repugnem usar nem saiba
fazer. Sou daquelas pessoas que também não ouve quem sabe muito. Diziam os avós
que quem sabe muito é o diabo porque é velho. Prefiro sempre quem faz. Aceito
de bom grado quem faça melhor que eu e estou sempre disposta a mudar para
melhores práticas. Por isso não me atrevo a indicar caminhos nem a apontar
erros aos outros. Não há na vida tempo para apontar erros; há sim, tempo para
corrigir e melhorar, adaptar e construir até à satisfação possível. Nem me
passa pela ideia dizer que o que penso acerca do nosso sistema político é o que
está definitivamente correto. O tal sistema é feito por pessoas que imagino a
esforçarem-se para dar o melhor que podem de si à sociedade. Se essa sociedade
as deixa agir impunemente em ocasiões críticas e se recusa a ver os defeitos da
sua matriz, que posso eu fazer? Grande parte deste modus operandi já
existia quando vou tomando consciência dele e sei
do meu tamanho para fazer a diferença: só a posso fazer em mim, na minha
prática. Por isso, recusar fazer parte do que entendo por mais nocivo
é-me
vital. Por tudo isto, não quero fazer parte de um qualquer saco de
farinha para
apodrecer na despensa desta cozinha velha feita para empanturrar frades.
Fiquem
com todo o poder que cá me governarei como o grão de trigo se governa
com a
chuva e o sol no torrão comum: as circunstâncias farão o resto! Afinal, é
da força dos grãos que não entram na moagem que se faz o melhor
fermento, diz o povo! Modéstia aqui rima com moléstia!\\
Maria Leonor Vieira (Membro da Coordenação Nacional +D) Os textos de opinião aqui publicados, se bem que da autoria de membros dos órgãos do +D, traduzem somente as posições pessoais de quem os assina.