terça-feira, 30 de junho de 2015

[Opinião +D] Do ódio à humanidade

No dia 28 de Maio de 2015, publicou António Pinto Ribeiro (A.P.R.) no Jornal Público um interessante artigo (“O mundo sem nós”), não apenas por aquilo que expressamente diz, como, sobretudo, por aquilo que, de modo mais tácito, denota.

Partindo da tese geral de que a “a presença do homem na Terra é a presença da destruição” (?!), A.P.R. vai depois focar de forma mais precisa o seu alvo, dizendo-nos que “a modernidade europeia que se impôs na colonização fê-lo decepando nas comunidades ameríndias a natureza do humano e a natureza da cultura”, falando, por fim, “daquilo que se designa como a ‘westernização’ do mundo”.

Reconhecendo-se que nada do que A.P.R. defende é propriamente original, nem por isso o referido artigo deixa de nos merecer uma indignada resposta. Sobretudo porque todo o discurso de A.P.R. assenta numa série de equívocos infelizmente cada vez mais disseminados na mundividência pós-moderna.

O primeiro desses equívocos – ou erros absolutos – é o de qualificar a presença do homem na Terra como, sem mais, “uma presença da destruição”. 

Essa asserção denota uma visão ingénua (para dizer o mínimo) da natureza, muito comum em certas correntes (por exemplo: nos ditos “partidos animalistas”), que é absolutamente falsa. Basta olhar para a natureza com olhos de ver para perceber que toda ela é intrinsecamente cruel e que, mais do que isso, tal é condição do seu próprio equilíbrio (por exemplo: na correlação entre as espécies).

É, pois, absolutamente falso que tenha sido a presença humana a trazer crueldade ou destruição, por mais exemplos que se possam aduzir de crueldade humana. Decerto, temo-los aqui em conta. De igual modo, é absolutamente falsa essa visão também ingénua (de novo, para dizer o
mínimo) das comunidades colonizadas pelos povos europeus. Hoje, por exemplo, é mais do que sabido que os povos africanos já se escravizavam entre si antes dos portugueses terem chegado a África – e o mesmo se diga da América e da Ásia.

Ao dizermos isto, não pretendemos, decerto, “branquear” todo o processo de escravatura e de colonização. Não podemos, porém, é aceitar essas visões maximamente maniqueístas que ainda hoje infectam muitos livros de história. Tal como não foi a presença humana que trouxe crueldade e destruição à natureza, também não foram, em particular, os europeus que levaram crueldade e destruição aos “paraísos” africano, americano e asiático. Quanto muito, poder-se-á falar aqui de uma questão de escala – regressando ao exemplo já aduzido, o máximo que podemos dizer é que as autoridades portuguesas da época praticaram a escravatura (já existente,
reiteramo-lo) a uma escala maior.

Decerto, como defende A.P.R. citando Lévi Strauss, “o mundo começou sem o homem e terminará sem ele”. Mas isso não significa que a presença humana não tenha sido e continue a ser, absolutamente considerada, um enriquecimento substantivo do próprio mundo. Apesar de toda a dose de destruição (em parte, decerto, evitável), o saldo continua a ser (muito) positivo. Pelos vistos, há quem preferisse um mundo sem humanidade – inclusive, sem línguas nem culturas (em particular, sem lusofonia…). 

Nós, não. À escala do universo – ou, pelo menos, da nossa galáxia –, a gesta humana no planeta Terra continua a orgulhar-nos. 
Agenda - Esta semana, Nova Águia 15 em Coimbra e Olhão: 01.07.15 -
18h30: Livraria Miguel de Carvalho | 03.07.15 - 19h00: Sociedade Recreativa Olhanense.

Renato Epifânio (membro da Coordenação Nacional do +D)
Os textos de opinião aqui publicados, se bem que da autoria de membros dos órgãos do +D, traduzem somente as posições pessoais de quem os assina. 

segunda-feira, 22 de junho de 2015

[Opinião +D] Carta Aberta ao Ministério da Educação e Ciência do Governo de Portugal

De forma pública e descomplexada, saudamos, juntamente com a Associação de Professores de Latim e Grego, a pretensão do Ministério da Educação e Ciência do Governo de Portugal de, no próximo ano lectivo, desenvolver um projecto de Introdução à Cultura e Línguas Clássicas no ensino básico.


Enquanto país europeu que sempre foi, Portugal deve preservar essa sua matriz cultural e civilizacional, contrariando uma certa inércia para o esquecimento histórico, bem patente, por exemplo, na diluição da raiz etimológica de grande parte do nosso vocabulário que o novo acordo ortográfico propõe.


Sendo o país europeu com as mais antigas fronteiras definidas, Portugal, de resto, deveria renegar de vez essa atitude provinciana de “bom aluno europeu”, que este e os anteriores Governos têm, nas últimas décadas, assumido. Não precisamos de fazer prova da nossa condição europeia, nem devemos olhar de baixo os restantes povos europeus. Não temos, em suma, de sentir um complexo de inferioridade em relação a qualquer outro povo deste nosso comum continente.
Dito isto, para nós Portugal não é apenas um país europeu. É, de igual modo, senão ainda em maior medida, cultural e civilizacionalmente, um país lusófono. Por isso, exortamos o Ministério da Educação e Ciência do Governo de Portugal a introduzir, complementarmente à disciplina de “Cultura e Línguas Clássicas”, uma disciplina de “Cultura Lusófona”, também no ensino básico.
Nesta disciplina, deveriam ter lugar as diversas culturas de todos os países e regiões de língua portuguesa, numa visão de convergência, acentuando aquilo que nos une sobre aquilo que nos separa, mas sem qualquer pretensão uniformizadora. A cultura lusófona será tanto mais rica quanto mais assumir a sua dimensão plural e polifónica, ou, para usar um termo que tem tudo a ver com a nossa história comum, “mestiça”. 


Desde já nos manifestamos disponíveis para colaborar com o Ministério da Educação e Ciência do Governo de Portugal na definição dos conteúdos programáticos dessa nova disciplina.
Essa necessidade de dar a conhecer as diversas culturas de todos os países e regiões de língua portuguesa deveria, de resto, atravessar os diferentes graus de ensino – necessidade tanto mais imperiosa porquanto os nossos “mass media” continuam, por regra, a ignorar ostensivamente o restante mundo lusófono, ou apenas a lembrá-lo pelas piores razões. Se só se pode amar verdadeiramente o que se conhece, é pois tempo de dar realmente a conhecer as diversas culturas de todos os países e regiões de língua portuguesa. Para, enfim, podermos amar a valorizar devidamente a nossa comum cultura lusófona. 

Agenda MIL - Esta semana, mais uma sessão de apresentação da Nova Águia
15: 26.06.15 - 18h00: Biblioteca Municipal D. Dinis (Odivelas).



Renato Epifânio (membro da Coordenação Nacional do +D)

Os textos de opinião aqui publicados, se bem que da autoria de membros dos órgãos do +D, traduzem somente as posições pessoais de quem os assina. 

terça-feira, 16 de junho de 2015

[Opinião +D] Uma Biografia de Agostinho da Silva (III)

Esse é, de resto, na nossa perspectiva, o maior paradoxo da existência de Agostinho da Silva – como é que alguém que não foi verdadeiramente do nosso tempo conseguiu prever, melhor do que ninguém, o Portugal pós-imperial. Antecipando a previsível catástrofe, tentou, ainda nos anos sessenta, avançar para uma verdadeira Comunidade Lusófona. O Estado Novo não lhe deu ouvidos. A Revolução em curso também não: “…a ideia geral talvez fosse, e eu próprio a defendia e procurei no princípio da guerra em Angola, junto de autoridades portuguesas, por exemplo de um embaixador no Rio, pôr-lhes essa ideia na cabeça... fazer das colónias e de Portugal uma comunidade de língua portuguesa. Ideia que expus a Franco Nogueira quando vim a Portugal, em 1962, convidado pelo Governo português para discutir o estatuto do Centro de Estudos Portugueses em Brasília. O ministro Franco Nogueira, ministro dos Estrangeiros nessa altura, recebeu-me e pudemos conversar com toda a franqueza, perguntando-me ele se eu achava que a ideia de uma comunidade luso-brasileira seria bem recebida no Brasil, respondi-lhe que não. 

Exactamente por causa da atitude que Portugal estava a tomar com as colónias, com Angola naquela ocasião, o Brasil de nenhuma maneira ia aceitar isso, pois recordava-se muito bem que tinha sido colónia. A meu ver, Portugal tratou o Brasil muito bem quando foi colónia e se não tivessem sido os portugueses, o Brasil não se teria constituído. Mas o Brasil muitas vezes achava que os portugueses tinham tido defeitos na colonização — a meus olhos esses defeitos não existiram, embora houvesse muita coisa individual de tipo geralmente conotado com a colonização rapinante dos países. Mas não me parecia que naquela altura aceitassem uma coisa dessas. Mas havia algo que achava que aceitavam e que tomava a liberdade de expor a Franco Nogueira, que de resto tinha tido relações com um grande amigo meu, o poeta Casais Monteiro, e, portanto, eu podia falar com uma certa liberdade, por isso disse-lhe que o que me parecia que se devia fazer era uma comunidade luso-afro-brasileira com o ponto africano muito bem marcado. Quer dizer, se pudesse, eu poria o ponto central da comunidade, embora cada um dos países tivesse a sua liberdade, a sua autonomia, em África, talvez Luanda ou no interior de Angola, no planalto, de maneira que ali se congregassem Portugal e o Brasil para o desenvolvimento de África e para que se firmasse no Atlântico um triângulo de fala portuguesa — Portugal, Angola, Brasil — que pudesse levar depois a outras relações ou ao oferecimento de relações de outra espécie aos outros países. Então Franco Nogueira disse-me que isso era completamente impossível, que Portugal não se podia dividir e que não havia nada a fazer nesse ponto. De maneira que eu continuo a pensar que, aquando da revolução em 1974, se poderia talvez ter tentado isso.” (in Vida Conversável, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994, pp. 51-52).

Resta perguntar se, esgotada a ilusão europeísta, que, como sabemos, Agostinho da Silva igualmente antecipou, chegou a hora de tentar de novo. Nós consideramos que sim.

Agenda – 20 de Junho, às 15h, nos Recreios da Amadora: mais uma “Tarde Lusófona”, mais uma sessão de apresentação da Nova Águia nº 15.


Renato Epifânio (membro da Coordenação Nacional do +D)

Os textos de opinião aqui publicados, se bem que da autoria de membros dos órgãos do +D, traduzem somente as posições pessoais de quem os assina. 

terça-feira, 9 de junho de 2015

[Opinião +D] Uma Biografia de Agostinho da Silva (II)

Mas regressemos a este colossal livro, não tanto pelo seu tamanho (mais de setecentas páginas), como, sobretudo, pela sua ousadia: fazer uma Biografia de Agostinho da Silva. Sabemos bem que esta era uma tarefa tão desejada por muitos quanto ciclópica, dados os muitos “buracos negros” 
que existiam na vida de Agostinho da Silva. António Cândido Franco, desde já o dizemos, não traz à luz todos esses “buracos negros”. Mas conseguiu realizar uma obra que merece, na íntegra, esse subtítulo: “Uma Biografia de Agostinho da Silva”. E sublinhamos aqui o artigo, que parece ter escapado a alguns comentadores mais apressados: trata-se aqui de “Uma Biografia de Agostinho da Silva”, não de “A Biografia de Agostinho da Silva”.
Isso é desde logo relevante porque toda esta Biografia se desenvolve a partir de uma perspectiva: a de António Cândido Franco, necessariamente. 
Assim, tal como o próprio Agostinho da Silva nos deu, numa das suas mais conhecidas obras, “Um Fernando Pessoa” e não “O Fernando Pessoa”, assim também António Cândido Franco” nos dá “Um Agostinho da Silva” e não “O Agostinho da Silva”. Tanto mais porque, ao longo da obra, António Cândido Franco parece-nos enaltecer mais as dimensões da vida e obra de Agostinho da Silva em que mais se reconhece – e ao dizermos isto não estamos a fazer, como alguns poderão pensar, um juízo negativo.
Temos aqui bem presente a lição daquele cuja obra, a par de Agostinho da Silva, mais estudámos no âmbito do pensamento português contemporâneo – falamos de José Marinho. Escreveu ele que “quando expomos um pensador devemos dar toda a força ao seu pensamento” – defendendo ainda, citando Schopenhauer, “tal atitude é, em relação a eles, a mais adequada e é, para o nosso próprio pensamento, a mais proveitosa”. Ou seja: António Cândido Franco, ao ter – como escrevemos – enaltecido mais as dimensões da vida e obra de Agostinho da Silva em que mais se reconhece, procurou dar (e bem) “toda a força ao pensamento” agostiniano. Nós, decerto, faríamos diferente – mas com o mesmo objectivo. Também nós, com efeito, tendemos a enaltecer mais as dimensões da vida e obra de Agostinho da Silva em que mais nos reconhecemos.
O retrato que António Cândido Franco nos dá de Agostinho da Silva é pois um seu retrato, mas é, inequivocamente, um retrato verdadeiro. 
Verdadeiro e generoso: mesmo que algumas passagens possam não agradar a alguns gostos mais conservadores (e isso chegou a acontecer connosco – não temos qualquer complexo em assumi-lo), António Cândido Franco procurou sempre aquele que seria, na sua perspectiva, o melhor ângulo, o ângulo mais favorável ao retratado, mesmo quando não escamoteia as dimensões mais chãs de qualquer existência humana. Em todas essas dimensões, foi, com efeito, Agostinho da Silva um homem maximamente viril, maximamente enérgico. Um colosso, numa palavra. Só acrescentaríamos “estranhíssimo” porque, nos nossos tempos, homens assim são cada vez mais raros. Verdadeiramente, Agostinho da Silva não foi um homem do nosso tempo.

Post Scriptum – No dia 10 de Junho, às 18h, no Espaço Arte Europa-América (Av. Marquês de Tomar, 1b, em Lisboa, junto ao Saldanha), iremos lançar a nossa mais recente obra: “A Via Lusófona II”, com prefácio de Adriano Moreira e apresentação de Mendo Castro Henriques. 
Fica o convite.

Renato Epifânio (membro da Coordenação Nacional do +D)

Os textos de opinião aqui publicados, se bem que da autoria de membros dos órgãos do +D, traduzem somente as posições pessoais de quem os assina. 

segunda-feira, 1 de junho de 2015

[Opinião +D] Uma Biografia de Agostinho da Silva (I)

Comecemos por falar sobre o autor desta obra colossal (O Estranhíssimo Colosso. Uma Biografia de Agostinho da Silva, Quetzal, 2015, 735 pp.): 

António Cândido Franco. Não tanto para salientar a sua já vasta obra – recordamos aqui alguns títulos: Memória de Inês de Castro (1990), Eleonor na Serra de Pascoaes (1992), Vida de Sebastião, Rei de Portugal (1993), A literatura de Teixeira de Pascoaes (2000), Os Descobrimentos Portugueses e a Demanda do Preste João (2001), A Rainha Morta e o Rei Saudade (2003), Viagem a Pascoaes (2006), A saga do Rei Menino (2007), A herança de D. Carlos (2008), Vida Ignorada de Leonor Teles (2009), Os pecados da Rainha Santa Isabel (2010) e Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal (2013) –, ou sobre a sua carreira académica na Universidade de Évora – onde é professor há já bastantes anos –, mas sobre o seu carácter, mais precisamente, sobre um traço do seu carácter que valorizamos em particular.

Ao contrário do que é hábito – sobretudo, arriscamos dizê-lo, em Portugal –, António Cândido Franco lida bem com o diferente, ou seja, consegue dialogar com quem tem posições muito diversas das suas, conseguindo até, nalguns casos, admirar essas pessoas, sem que isso implique qualquer abdicação da sua posição de partida. Dou um exemplo recente: a recensão que António Cândido Franco publicou no nº 14 da Revista NOVA ÁGUIA (2º semestre de 2014) da obra O Puto – Autópsia dos Ventos da Liberdade, de Ricardo Saavedra. Esta obra, para quem não o tenha presente, é ela própria uma biografia, no caso de alguém que, nas palavras de António Cândido Franco, “viveu o lado errado e em geral esquecido da Revolução dos Cravos” – acrescentando: “Este homem não viveu, como tantos de nós, o 25 de Abril mas apenas a descolonização. Em vez de alegria, sentiu medo; em lugar de euforia, a depressão; em vez duma libertação, o pânico de perder casa e vida. É de pasmar que o herói deste livro, já encarcerado, no feriado do 25 de Abril traje de luto pela pátria morta? Não cremos. Está na lógica do livro e da personagem.”.

Não conhecemos muitas pessoas que, comungando o mesmo ideário de António Cândido Franco, tenham igual grandeza de carácter para escreverem o que acabei de citar – de imediato, lembro-me de Raul Proença, que salienta a “belíssima alma” de Teixeira de Pascoaes no mesmo gesto em que assume a dissidência em relação à “Renascença Portuguesa”. A regra entre nós é a
contrária: as divergências acabam (quase) sempre em desqualificações: se alguém não concorda connosco é porque, em última instância, padece de alguma falha de carácter ou de inteligência. É bem mais complicado, com efeito, admitir, para mais de forma expressa, que os nossos adversários – ou mesmo os nossos inimigos – sejam pessoas no mínimo tão bem-intencionadas quanto nós, por mais que, objectivamente, consideremos que estejam do “lado errado”. Daí, de resto, o erro absoluto daqueles que reduzem os diferendos ideológicos a divergências éticas – da extrema-esquerda à extrema-direita, passando decerto por todas as variantes do centro, há pessoas bem-intencionadas. A diferença não está pois aí. 

Post scriptum – 5 de Junho, 18h, na Biblioteca Nacional, em Lisboa: 
Homenagem a Banha de Andrade, no centenário do seu nascimento, com Pinharanda Gomes.



Renato Epifânio (membro da Coordenação Nacional do +D)

Os textos de opinião aqui publicados, se bem que da autoria de membros dos órgãos do +D, traduzem somente as posições pessoais de quem os assina.